ESPECIAL
VEJA, Fevereiro de 1964
Quatro garotos britânicos desembarcam em Nova York, cativam
multidões e fazem um show visto por 73 milhões de pessoas pela TV.
Os adultos torcem o nariz, mas esse fenômeno chegou para ficar
|
O show que mudou tudo: Paul, George, Ringo e John no palco do programa de Ed Sullivan, nos estúdios da CBS, em NY |
A espera foi longa e sofrida – ao menos para os padrões
de um adolescente que não consegue tirar alguma coisa da cabeça.
Demorou mais de um ano desde que eles estouraram na terra da rainha,
mas os americanos finalmente puderam ver de perto os Beatles, o jovem
fenômeno britânico que contagia multidões e enlouquece seus fãs, no
último dia 9, no
Ed Sullivan Show, da TV CBS. A audiência
televisiva da apresentação, realizada num teatro da Broadway, em
Manhattan, foi nada menos que impressionante: 73 milhões de pessoas
ficaram grudadas à tela durante a exibição. A partir do momento em que
Paul McCartney abriu a boca para cantar
close your eyes and I’ll kiss you (de
All My Loving), não tinha mais volta. Não há um canto da América que não tenha sucumbido à febre da chamada "beatlemania".
Foram cinco canções apenas:
All My Loving,
Till There Was You,
She Loves You, I Saw Her Standing There e
I Want To Hold Your Hand.
E foi o bastante para que os Beatles tivessem os Estados Unidos a seus
pés. Mas o começo ainda foi tenso, por conta de um contratempo: o
guitarrista George Harrison só conseguiu subir ao palco às custas de
muito remédio, por causa da violenta gripe com a qual tinha
desembarcado na América. George não participou da passagem de som e
nem do teste de palco para as câmeras, realizados no dia 8. Quando os
Beatles tocaram
Till There Was You, John Lennon foi enquadrado pela câmera, e uma legenda divertida apareceu:
Sorry girls – he’s married
("Desculpem, garotas – ele é casado"). Segundo a produção do
programa, a platéia que assistiu os Beatles dentro do estúdio da CBS
foi de 728 pessoas – todas elas agora na mira da inveja de dezenas de
milhões de fãs.
Não é para menos. A apresentação dos Beatles no programa
já entrou para a história. Há mais de uma década, o carismático Ed
Sullivan apresenta o show de variedades que se tornou uma verdadeira
instituição americana. Todos os domingos, às 20 horas em ponto, os
telespectadores ligam a TV e não perdem uma cena do programa,
transmitido ao vivo – não só para ver nomes consagrados da música
popular, mas também para descobrir novas tendências e talentos
promissores. Com os Beatles não foi diferente, ainda que tenham se
apresentado entre comediantes e shows de mágica. Na noite em que os
quatro rapazes ingleses tomaram o palco, algo de muito especial
aconteceu. Numerosos artistas já tiveram a chance de se apresentar
ali. O impacto do show dos britânicos, porém, parece ter sido mais
poderoso do que qualquer outro.
|
Descanso depois do pandemônio: o quarteto passeia num barco na Flórida |
Um exemplo? A polícia de Nova York informou que, durante o
tempo em que os Beatles se apresentaram naquela noite de domingo, não
houve um crime sequer reportado nos Estados Unidos. Ao ser
questionado sobre isso, George Harrison brincou: "Até os criminosos
pararam durante 15 minutos enquanto estávamos no ar". E ele está
certo. Difícil ficar indiferente a uma apresentação da banda. Não é
apenas o charme de John, Paul, George e Ringo que contagia. As melodias
são memoráveis e as letras das canções são diretas e coloquiais,
criando um elo emocional instantâneo entre os quatro garotos e seus
fãs. As mensagens são claras: "de mim para você", "ela te ama", "quero
segurar sua mão". Nada mais simples, nada mais doce. Os Beatles, pelo
que se vê, aprenderam esse truque ouvindo muito Carole King e Gerry
Goffin, do Brill Bulding.
Estratégia e promoção - Quando a gravadora Capitol lançou
I Want To Hold Your Hand e
I Saw Her Standing There,
em 26 de dezembro do ano passado, o coração da indústria musical
americana já estava preparado. Já na semana seguinte, o disco entrou
na parada, em 83º lugar,pulando para 42º na outra semana e chegando ao
topo em 15 de janeiro. Os Beatles, que na ocasião estavam trabalhando
duro em Paris, comemoraram com o empresário Brian Epstein (que
colocou um penico na cabeça imitando um chapéu) e com o produtor George
Martin, os dois mentores do sucesso do grupo.
Antes da primeira incursão até os EUA, a Capitol montou
um cuidadoso esquema de divulgação, incluindo anúncios, aparições
promocionais e até peças publicitárias.Além da agenda montada pela
gravadora, Brian havia planejado outras aparições para a banda. Com
muita insistência, convenceu Sullivan a receber os Beatles em seu
conceituado programa de TV. Quando o apresentador estreou seu show, em
1947, já era respeitado nos bastidores da TV americana (ele vem do
colunismo social e também teve passagem pelo rádio). O programa dele,
contudo, não foi o único responsável por dar início à febre.
Na verdade, a conquista dos Estados Unidos começou já no
dia 7, quando o voo 101 da Pan Am aterrissou em Nova York, no
Aeroporto Internacional da cidade (que há dois meses passou a ser
chamado de John F. Kennedy, em tributo ao presidente morto no ano
passado). No exato instante em que os Beatles pisaram pela primeira
vez em solo americano, cerca de 10.000 fãs entraram em delírio à beira
da pista. E a cena atraiu a atenção do mundo todo. A histeria da
beatlemania é algo até hoje nunca visto, nem nos anos de Elvis
Presley.
|
Histeria: fãs pedem permanência eterna |
Humor contagiante - Aproximadamente duzentos
jornalistas estavam a postos no saguão do aeroporto. Os repórteres
pareciam certos de que conseguiriam arrancar alguma declaração tola ou
polêmica dos rapazes. Mas os quatro lançaram mão de seu charme e
irreverência e dobraram qualquer resistência à sua chegada. Quando um
repórter perguntou sobre um movimento em Detroit para acabar com os
Beatles, Paul respondeu: "Nós também temos nosso movimento para acabar
com Detroit". Quando a entrevista começou a ficar muito barulhenta,
John soltou um sonoro "calem a boca". Todos riram. No dia seguinte, o
jornal londrino
The Times publicou: "O humor dos Beatles é contagiante".
Os garotos de Liverpool não são, contudo, uma
unanimidade. O mundo adulto não sabe bem o que fazer com eles. Boa
parte da imprensa "séria" americana tratou o quarteto com
condescendência. Como a abertura da reportagem da revista semanal
Newsweek:
"Visualmente, são um pesadelo. Ternos eduardianos apertados e cabelos
em forma de tigela. Musicalmente, um desastre: guitarras e bateria
detonando uma batida impiedosa, que afugenta ritmo, melodia e harmonia.
As letras (pontuadas por gritos de ‘yeah, yeah, yeah’) são uma
catástrofe, um amontoado de sentimentos baseados em cartões do dia dos
namorados".
Seguindo a mesma linha, O
New York Daily News
publicou: "Bombardeada com problemas ao redor do mundo, a população
voltou seus olhos para quatro jovens britânicos com cabelos ridículos.
Em um mês, a América os terá esquecido e vai ter que se preocupar
novamente com Fidel Castro e Nikita Krushev". Mas será mesmo que eles
logo mergulharão de volta à obscuridade? Os Beatles podem parecer
estranhos a princípio, quase como bonecos. Mas uma os difere do resto
das estrelas que dominam as paradas de sucessos hoje em dia: ninguém os
manipula. O jovem quarteto provou que artistas pop não têm que ser
falsos ou bobos, ou uma combinação de ambos. O importante é que são
reais. Fumam, bebem, até falam palavrões. E derrotam seus inimigos com
charme e um doce sorriso.
Na virada para 1964, os Beatles se tornaram a maior banda
do mundo. Agora, há uma câmera ligada em qualquer lugar em que
estejam. A visita aos EUA só potencializou o espantoso assédio a que
são impiedosamente submetidos: são filmados ou fotografados dentro do
avião, com a multidão à espera no aeroporto, no desembarque, na
entrevista coletiva, dentro da limusine, no hotel, nos estúdios de
rádio do DJ nova-iorquino Murray the K (talvez o maior incentivador da
beatlemania nos EUA), e, claro, no palco do Ed Sullivan Show. As lentes
que capturaram a eletrizante apresentação dos quatro no programa,
porém, fizeram mágica. Transmitiram para mais de 70 milhões de pessoas
uma sensação que já tinha conquistado multidões de fãs do outro lado
do Atlântico. Apostar que tenha sido apenas uma febre momentânea
parece no mínimo arriscado.